Adsense

Analytics TAG Global

TAG Analytics

25 julho 2025

Como funciona a correção de parcelas em contratos imobiliários

 Os contratos imobiliários são muito comuns. Todos que têm a intenção de adquirir imóveis farão parte de contratos de compra e venda e, com isso, deverão se submeter aos prazos de entrega, forma de pagamento das prestações e condições previstas no instrumento jurídico.

Um dos pontos que tem gerado discussão não é muito conhecido. Mas merece atenção. Trata-se da forma de correção monetária das parcelas previstas em contrato.

Melhor explicando. Em regra, contratos inferiores a 36 meses não podem prever que a correção das parcelas seja feita de forma mensal, isto é, o comprador não deveria efetuar o pagamento de sua parcela com algum tipo de correção monetária mensal.

Isso porque a Lei 10.931/2004, que aborda questões inerentes a créditos imobiliários, prevê que não poderá haver este tipo de correção da moeda em contratos com prazo inferior a 36 meses:

Art. 46. Nos contratos de comercialização de imóveis, de financiamento imobiliário em geral e nos de arrendamento mercantil de imóveis, bem como nos títulos e valores mobiliários por eles originados, com prazo mínimo de trinta e seis meses, é admitida estipulação de cláusula de reajuste, com periodicidade mensal, por índices de preços setoriais ou gerais ou pelo índice de remuneração básica dos depósitos de poupança.

Correção mensal impacta valor do negócio

O que isso significa? Que o comprador não poderá pagar qualquer tipo de correção mensal nas parcelas em contratos inferiores a 36 meses. E a correção monetária, considerando o valor alto das parcelas, pode impactar muito no valor total do negócio.

Gesrey/Freepik

Algumas construtoras/incorporadoras, porém, têm utilizado um argumento para cobrarem correção mensal nas parcelas: inserção de uma parcela ínfima de R$ 1.000 no 37º mês, que não representa nem 1% do valor global do contrato.

Mas os tribunais estão atentos. Foi o que decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo em caso recente:

APELAÇÃO. Ação de revisão contratual com pedido de repetição de indébito. Promessa de compra e venda de imóvel. Sentença de procedência. Recursos de ambas as partes. EXAME: artigo 46 da Lei n. 10.931/2004 que expressamente prevê a possibilidade incidência mensal de correção monetária nos casos de financiamento imobiliário com prazo mínimo de 36 meses. Inclusão de parcela adicional com valor irrisório com o intuito de ultrapassar o prazo mínimo legal e possibilitar a atualização mensal das prestações contratuais. Abusividade. Má-fé da parte requerida evidenciada. Engano não justificável. Devolução em dobro dos valores cobrados de forma indevida, correspondentes à diferença entre a correção monetária mensal e a anual. Aplicação do artigo 42 do CDC. Sentença reformada em parte. RECURSO DA PARTE AUTORA PROVIDO. RECURSO DA PARTE REQUERIDA NÃO PROVIDO. (TJSP;  Apelação Cível 1046611-48.2024.8.26.0100; Relator (a): Celina Dietrich Trigueiros; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 21ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/06/2025; Data de Registro: 30/06/2025)

Parcela final como forma de correção

Em resumo, apesar de a maioria das vezes os contratos serem de curta duração (alguns com apenas 12 meses), algumas empresas têm inserido uma parcela ínfima de R$ 1.000,00 no 37º mês do contrato para que possam cobrar do comprador correção mensal sobre todas as parcelas. Ou seja, para que respeitem a periodicidade prevista no artigo 46 da lei acima mencionada. Periodicidade, como visto, artificial.

O procedimento, é bem verdade, não é unânime. A maioria das corretoras respeita a periodicidade legal. Aliás, e não menos importante, as empresas podem exigir a correção anual das parcelas, assim como prevê o artigo 28 da lei que instituiu o Plano Real:

Art. 28. Nos contratos celebrados ou convertidos em REAL com cláusula de correção monetária por índices de preço ou por índice que reflita a variação ponderada dos custos dos insumos utilizados, a periodicidade de aplicação dessas cláusulas será anual.”

O que é vedado, como detalhado, é a correção mensal das parcelas em contratos inferiores a 36 meses.

O fato é que cabe às construtoras evitarem a judicialização e ações com esse propósito, pois a lei permite correções anuais que tornam o contrato de compra e venda equilibrado em relação à volatilidade da moeda.

Confeccionar um contrato equilibrado e justo contribui para a confiança de todos os envolvidos e, claro, diminui custos da judicialização, como custas processuais, honorários advocatícios, entre outros.

20 julho 2025

Luiz Gama e suas lições aos profissionais do Direito

Luiz Gonzaga Pinto Gama, natural de Salvador, filho de uma africana criada em casa de família rica, graciosa e inteligente. Viveu ela com um homem que pagou por sua alforria e com ele teve o filho Luiz que, desde logo, destacou-se pela inteligência. Após exercer algumas atividades profissionais, passou a exercer a advocacia na sua cidade e depois em São Paulo. Atendendo os escravos nas suas diversas necessidades — mas não só eles —, tornou-se conhecido pela inteligência e combatividade. Nas palavras de Pedro Paulo Filho, “empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bem… Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo que vinha das mãos de algum cliente mais abastado”. [1]

Spacca

Luiz Gama não era graduado em Direito. No Brasil, foi somente após a Proclamação da Independência que vieram a ser criados, no ano de 1827, os dois primeiros estabelecimentos na área do ensino jurídico, as faculdades de Direito de São Paulo (SP) e de Olinda (PE). A falta de advogados era suprida pela permissão dada a pessoas que dominavam a prática e, com isto, obtinham autorização para atuar em Juízo. Eram os provisionados que, na linguagem popular, eram chamados de rábulas. Luiz Gama era um deles.

Experiência como funcionário público

Luiz Gama, no início de sua vida profissional, foi amanuense de repartição policial, cargo que exerceu por 12 anos. Amanuense era um funcionário encarregado de tirar cópias, fazer registros e outras atividades administrativas. Os amanuenses, à época, eram nomeados e demitidos por simples ato do chefe de polícia (atual secretário de Segurança).

Em 1869, Luiz Gama foi demitido do seu cargo pelo chefe de polícia, sob a justificativa de que vinha tratando de maneira inconveniente e desrespeitosa o suplente de juiz municipal, em processos relacionados com direitos dos escravos.

Inconformado, publicou sua defesa no jornal Correio Paulistano, [2] afirmando que o ato, na verdade, era fruto de petição feita ao juiz municipal Rego Freitas para que o africano Jacyntho, importado ilegalmente, pois a lei proibia tal conduta, fosse-lhe entregue em depósito.

A coragem e a força da argumentação impressionam. Dá-se um exemplo, com a menção final dirigida ao juiz municipal que indeferiu sua petição a favor do escravo detido: Quanto ao sr. dr. Rego Freitas, direi apenas que é um pobre de espírito, para quem Deus aparelhou o reino do céu[3]

Registre-se o fato de que, na época, inexistia a proibição de funcionário público peticionar em Juízo e até mesmo as funções judiciais e policiais se misturavam, sendo comum juízes exercerem cargos na área da segurança pública.

Advocacia

Após a demissão, dedicou-se Luiz Gama de corpo e alma à advocacia. E o fez com todo empenho, como era próprio de sua personalidade. E assim publicou:

Reprodução
Trecho de Luiz Gama

A disponibilidade era a regra e o anúncio equivalia a dizer: quero trabalhar! Aceitaria defesas criminais na capital e no júri em qualquer município da província. Mas não se confunda o júri da época com o atual. A competência era abrangente, alcançava quase todos os crimes e não apenas os dolosos contra a vida, como agora.

Curiosa a menção no aviso de que se colocava à disposição na sua residência, na rua Vinte e Cinco de Março, nº 99. Referida rua, hoje conhecida por seu intenso comércio, recebe pessoas de todo o Brasil em um movimento intenso. Mas na época era um pacato local de residências.

Combatividade como regra

A principal característica da personalidade de Luiz Gama era a combatividade. Altaneiro, inteligente, dono de um rico vocabulário, o que faz pressupor muita leitura, irônico e persistente, empenhava-se na defesa de seus clientes com um vigor inesgotável. Suas defesas tinham como foco principal os escravos, pois, na época, muito embora ainda não reconhecida a abolição, muitas leis os protegiam e nem sempre eram cumpridas. Defendia-os gratuitamente, sustentando-se com o que recebia de pessoas de posses que o procuravam, inclusive de cor branca.

Reprodução
Trecho Luiz Gama
O Tribunal do Júri era o lugar em que mais se destacava, por conta de sua inteligência brilhante, raciocínio rápido e eloquência. No caso noticiado ao lado, consta: O réu foi absolvido, e o dr. Juiz de direito apelou. As absolvições por ele alcançadas eram rotina, sendo a notícia mencionada uma delas. O curioso é que o juiz de direito apelou da sentença, fato este inconcebível na atualidade.

Luiz Gama, convencido do direito dos que defendia, não se impunha limites. Suas defesas extrapolavam os processos, pois eram feitas também através da imprensa. Publicação sua no Correio Paulistano relata o caso da escrava Rita, alforriada por seu dono e que, para requerer o reconhecimento de sua liberdade, necessitava de um curador. O juiz municipal despachou, mandando juntar provas. Gama, mesmo sustentando que estas poderiam vir na instrução, juntou uma carta-testamento (ológrafo) do proprietário de Rita, na qual manifestava seu desejo de libertá-la. Todavia, outro juiz municipal despachou: Justifique. Inconformado, Gama publica seu inconformismo através da imprensa, cita precedente oposto de juiz norte-americano e, ao final, afirma:

Escrevendo estas linhas visei tão somente o direito de uma infeliz, que tem contra si até a animadversão da Justiça, e nunca foi, nem é, intenção minha molestar, ainda que de leve, dois respeitáveis jurisconsultos, caracteres altamente considerados, que tenho em conta e prezo como excelentes amigos[4]

Insubordinado pela própria natureza, a conduta de Luiz Gama ia além dos tribunais. Conta Almeida Nogueira, o grande historiador da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que Gama tratava todos os negros, mulatos e até brancos nos quais via sinais de mistura racial, por primo. Ao tentar libertar uma escrava de um certo comendador Loureiro, por ele foi tratado por “mulato muito atrevido”. Gama, que considerava Loureiro descendente de escravos, porque tinha cabelos bem crespos, ao encontrar-se com ele disse:

Sr. comendador, andava eu muito desejoso de encontrá-lo, a fim de tirar dois enganos: O sr. chamou-me mulato, e eu sou negro; e o sr, considera-se branco; entretanto, é mulato.[5]

Conclusões

Luiz Gama deixou lições explícitas ou implícitas que merecem ser registradas por todas as gerações que o sucederam, independentemente da época, porque são atemporais. Entre elas: a) a perda de um emprego (no caso, amanuense) pode abrir novas oportunidades muito mais interessantes; b) a dedicação de um profissional, no caso, um advogado, deve ser integral, com toda força e dedicação; c) há causas que se defendem por ideal e não por dinheiro, isto é, que fortalecem uma personalidade e dão-lhe reconhecimento, tanto assim que Luiz Gama é lembrado mais de 100 anos após a sua morte; d) um bom advogado, tal como deve ser com outras profissões jurídicas, não se curva diante das adversidades, a fim de conquistar vantagem momentânea; e) para tornar-se brilhante na área jurídica e, como no caso, inesquecível, é preciso cultura e isto Luiz Gama conquistou, com certeza, com centenas de horas dedicadas à leitura.

__________________

[1] PAULO FILHO, Pedro. Famosos rábulas no Direito brasileiro. Leme: J. H. Mizuno, 2007, p. 108.

[2]  O jornal Correio Paulistano nessa época tinha tendência liberal e posteriormente, na República, tornou-se conservador.

[3] Correio Paulistano. A demissão do Sr. Luiz Gama. São Paulo: 02 nov. 1869, p. 2.

[4] Correio Paulistano. A pedido. Questão de liberdade. São Paulo: 13.mar. 1869, p. 2.

[5] ALMEIDA NOGUEIRA, A Academia de São Paulo. Tradições e Reminiscências. São Paulo: A Editora, 1908, v. 4ª. série, pp. 232-233.

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus (Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

Fonte Conjur

27 junho 2025

Inteligência artificial: quando a informação não é saber

Todo momento de transição é um perigo! Assemelha-se a alguém que, diante de uma bifurcação, precisa optar por um dos caminhos que as circunstâncias lhe impõem, mesmo sem desejá-lo.

Reprodução
OAB Nacional aprovou recomendações para uso de inteligência artificial regenerativa na prática da advocacia

Hoje, na área da sociologia — dentro de uma compreensão bastante ampla —, dirigimo-nos a passos largos a uma dessas “bifurcações”, cujo rumo a ser escolhido resultará em consequências indeléveis para cada indivíduo e, por conseguinte, para a nação.

Falo da inteligência artificial [1].

Sobre esse tema, tão controverso quanto tentador, incidirá maior luz se o compararmos com aquela guinada ocorrida nos idos tempos de Gutenberg — momento de transição igualmente perigoso para a humanidade…

A respeito daquele contexto, certo literário de aguçada observação, contrapondo a era das catedrais com a da tipografia, escrevera com acerto: “O livro matará o edifício!” Com efeito, se as catedrais significavam uma mostra da inteligência humana esculpida em pedra, o homem daquela época pareceu preferir consignar seu gênio mais na imprensa do que na arquitetura, crendo ser esta menos duradoura do que aquela.

Movido pelo êxito da novidade, a humanidade abandonou séculos de pensamento refletidos nos pórticos de seus melhores templos para escolher a letra célere e passageira impressa em folhas de papel.

Mas não tinha muito o que fazer, pois o caminho estava escolhido, e o gênio de Gutenberg — sem o querer — enquanto disseminava ideias obliterava civilizações.

Mas sob este pensamento primeiro, acredito haver outro, novo, corolário menos visível e mais sutil, de cunho filosófico e moral, que talvez muitos pressintam, mas não consigam exprimir, e é de que quando mudam as formas do pensamento humano, são suas expressões que se alteram. Assim, se a humanidade foi uma até a invenção da imprensa, com mais razão podemos dizer que será outra depois do ingresso da IA.

Não quero ser avesso ao advento de qualquer elemento novo, mas apenas chamar atenção ao fato de que, no caso da IA, o problema que se coloca é muito análogo ao que se passou na época de Gutenberg: não se tratava tanto de interrogar se imprimir livros era uma coisa boa ou má — os benefícios eram evidentes —, mas sim questionar o que era impresso nos livros…

Spacca

Neste contexto, talvez conviessem melhor as indagações: o que temos permitido à IA? Ou, o que temos cedido a ela, de nossas responsabilidades intransferíveis? Temos preferido que ela pense por nós? Ou que somente nos ampare dentro dos limites cabíveis a um elemento externo falível? Estaria a IA, em tão pouco tempo, desrespeitando os ritmos naturais do conhecimento humano?

Informação e saber

Com o uso da IA, sem nos darmos muito conta, cada um começa a deixar que seja escrito em si – no interior indelével de nossas faculdades cognitivas – um livro bom ou mau, dependendo do uso que lhe dispensarmos; este “livro”, entretanto, talvez venha a solapar os fundamentos do edifício dos bons princípios que levamos décadas, ou até uma vida inteira, construindo.

Assim, da sofisticada produção da inteligência humana talvez germine não só a IA, mas também a disseminação generalizada da ignorância, se permitirmos que se imprimam em nosso interior caracteres tipográficos de uma concessão desregrada e desmesurada [2].

Em outras palavras, não culpemos a Gutenberg pelo seu gênio, mas questionemos aos maus usuários de sua invenção o terem publicado maus livros. Tivesse a sociedade daquele século 16 escolhido que a imprensa recém-nascida reproduzisse tão somente palavras afins com a beleza de suas edificações cristãs, teriam prosperado as Letras e a Arquitetura.

Com a IA — essa “bifurcação de nosso século” —, duas vias estão diante de nós, oxalá não prefiramos optar pelo atalho em detrimento do caminho verdadeiro, o único capaz de nos conduzir ao ponto final, ainda que custe mais pensamento.

Deveras, a IA nos prova, cada vez mais, que obter informação não significa necessariamente saber. Disso, aliás, Tomás de Aquino já nos tinha alertado, quando pontuou que “a palavra inteligência implica um conhecimento íntimo; inteligir é algo como ler dentro” [3].

Portanto, a regra é clara e simples como o pensamento do Aquinate: quando quisermos ler o sentido superficial e externo das coisas, usemos a IA — com critério! [4] —; mas quando quisermos ler as coisas desde dentro, não abandonemos nossa própria inteligência, pois é o maior presente que Deus nos deu.

 


[1] Em realidade, o tema inteligência artificial vem sendo aventado há décadas, embora fosse considerado bastante intangível, quase “crença tecnológica”. No entanto, tal “crença” passou a se materializar a partir da década de 1980, mediante o notável concurso de Edward Feigenbaum, considerado o criador dos “sistemas especialistas” – denominação primária daquilo que hoje chamamos inteligência artificial. Em 1994, Feigenbaum ganhou o prêmio Turing por sua grande contribuição ao que era considerado o “campo emergente” da computação, e pela demonstração de sua importância, como aliás vem ocorrendo com a inteligência artificial na atualidade.

[2] No que tange à regulamentação do uso da IA a nível nacional, interessa notar o seguinte: “No Brasil, para além do PL nº 2.338/2023 – que tramita no Congresso e visa instituir o Marco Legal da IA –, observam-se também significativos avanços em âmbito subnacional: Alagoas (Lei n. 9.095.2023) e Goiás (LC nº 205/2025) já regulamentam pontualmente o uso ético da IA no setor público; ainda na esfera estadual, Paraná adotou um Plano de Diretrizes da IA, e São Paulo discute o PL nº 180/2025, que autoriza a implantação voluntária de sistemas inteligentes de monitoramento por reconhecimento facial para apoio à segurança pública. No âmbito municipal, Curitiba aprovou a Lei nº 16.321/2024; São Paulo implementou o programa Smart Sampa, que utiliza IA e reconhecimento facial para monitoramento urbano e policiamento preditivo; São Leopoldo inovou com a ferramenta LegIA no Legislativo; e Goiânia retoma neste ano a tramitação do PL 240/2023. São iniciativas legislativas que demonstram que os entes subnacionais brasileiros, ainda que de forma heterogênea, começam a se mobilizar frente aos desafios impostos pela IA” (cf. Carvalho, André Castro; Ferro, Murilo Ruiz; Melo, Felipe Luiz Neves Bezerra de. Aqui).

[3] Tomás de Aquino. Summa Theologiæ, II-II, q. 8, a. 1. São Paulo: Loyola, 3. ed., 2012, v. 5, trad. Loyola. (Itálicos do original). Algo que excede os limites deste artigo, mas que convém ter em conta é o seguinte: São Tomás adota, em sua quase totalidade, os pressupostos aristotélicos acerca da inteligência, desenvolvendo-os, por exemplo, em seus Comentários aos livros da Metafísica e nas Questões disputadas sobre as potências (cf. Tomás de Aquino. Sententia libri Metaphysicae, liber I-XII. Disponível aqui. Acesso em: 30 jun. 2025; id. Quæstiones disputatæ de potentia. Textum Taurini, 1953. Disponível aqui).

[4] Neste sentido, ler também a recente mensagem do Papa Leão XIV aos participantes da 2ª Conferência anual de Roma sobre Inteligência Artificial, ética e governo corporativo. Disponível aqui.

Fonte: Conjur

12 junho 2025

Por que teses e temas editados pelos tribunais superiores não são precedentes

1. Quantas pessoas já foram vitimadas por precedentes que não são precedentes?

Outro dia discuti com alunos a questão da lenda jurídica chamada precedentes, na parte em que se fala da exigência de similitude fática. O ponto alto da discussão foi quando abordamos a origem da famosa Súmula 182, um autêntico exterminador de agravos interpostos contra inadmissão de recursos especiais. O dramático é que é uma súmula surgida do cível, originária de uma questão atinente à cédula rural. E anualmente ajuda a colocar na cadeia milhares de pessoas. E, de lambuja, serve para retirar ou conceder bens materiais a milhares de pessoas. Quantos já empobreceram por causa dessa súmula?

Como falar em similitude fática? E o que dizer da Súmula 7? Invocada como precedente, é tudo, menos a condensação daquilo que a formou: um conjunto de precedentes. Parece estranha essa formulação, mas não esqueçamos que uma súmula é o resultado de um conjunto de precedentes. E o que dizer do Tema 339, do STF? Quantas vítimas habitam os presídios por causa desse tema? Quantos bens mudaram de mãos por causa da discussão da fundamentação que, segundo o tema, não exige o exame de todos as teses esgrimidas pela parte? A agravante: tema não é precedente.

É sobre isso que quero tratar. Na linha do que venho escrevendo de há muito.

2. Por que insisti em incluir no CPC-2015 o artigo 926 (exigência de coerência, integridade e estabilidade)

É desejável que o sistema jurídico seja previsível. Por isso fiz força para incluir o artigo 926 no CPC. Era e é necessário um sistema com previsibilidade e segurança. Mas, não qualquer segurança.

Explico: aprovado o CPC, começou a batalha dos precedentalistas brasileiros para emplacar (e emplacaram, mesmo) a tese de que o direito, as leis, os textos, são indeterminados. Trata-se do realismo jurídico [1], pelo qual o direito posto pelo legislador é desprovido de sentido, cabendo às Cortes de Vértice (leia-se, Tribunais Superiores) estabelecer o sentido final. O ponto é esse. É o que se chama, cientificamente, de ceticismo. Sem tirar, nem por.

3. Os juízes devem seguir precedentes? Claro que sim. Mas seguir precedentes e não ‘póscendentes’ (regras gerais e abstratas)

Que os juízes devem seguir precedentes, concordamos (de novo registro “minha emenda ao CPC” que introduziu o artigo 926). Os próprios tribunais devem seguir (seus) precedentes. O problema é os Tribunais de Vértice estabelecerem, estipulativamente, direito como regras gerais e abstratas. Essa tarefa é do legislador. Isso mostra que os precedentes à brasileira desbordam do sistema constitucional.

Spacca

Claro que isso é um projeto de poder e que agrada os tribunais. Se há o poder de estabelecer o direito por autorictas (ato de vontade), o Poder Judiciário se transforma em legislador. Está aí a razão pela qual “se perdem no meio do caminho” os casos concretos que deveriam ensejar o precedente.

A cada julgamento, faz-se (emite-se) uma nova “lei”. Portanto, no Brasil o “precedente” é algo que já nasce precedente, para vincular — quando, ao contrário, o precedente original do common law (somente) se torna um precedente a partir da atividade reconstrutivo-interpretativa da ratio por parte dos tribunais subsequentes [2].

Aqui no Brasil, no afã de construir regras gerais, chegou-se a criar a figura do “precedente persuasivo”. Ora, esse conceito sofre de uma contradição performativa: se é persuasivo, não é vinculante. Para que serviria um precedente persuasivo? Permito-me dizer: o persuasivo não pode ser chamado de precedente. Pode ser qualquer coisa, menos precedente.

4. Um problema de institucionalidade: os tribunais têm a função de estocar normas para o futuro? Isso não seria tarefa do Legislativo?

Erro fundamental daquilo que venho denominando de “precedentes à brasileira” se materializa no desejo exa(ge)rado dos tribunais superiores em produzir um estoque de normas jurídicas para o futuro sob a forma de precedentes (teses, temas etc.). Trata-se de uma contradição hermenêutica: não há respostas antes que as perguntas sejam formuladas. Não é papel dos tribunais resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Precedentes são decisões pretéritas de casos concretos, cujas rationes são identificadas como norma pelos demais tribunais e sempre aplicadas contingencialmente.

Vinculante, num país de civil law, é a lei à qual o precedente se refere. Uma tese geral e abstrata para o futuro não é um precedente. É uma lei. Uma regra geral. Isso seria até uma contradição semântica. Vale ressaltar que em uma democracia constitucional o Poder Judiciário cuida do passado; pensar no futuro é tarefa do legislador. Conforme muito bem analisa José Luis Marti, o realismo jurídico é uma ameaça ao liberalismo e à democracia, ao permitir uma convergência dos poderes nas mãos do Judiciário enquanto único intérprete legítimo do direito.

5. Como se lida com precedentes? O overruling como direito fundamental! ‘Se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto’, disse o ministro

Se falamos em precedentes, temos de entender que estes têm uma dinâmica de funcionamento. Observe-se que o ministro Luis Salomão, diz, por exemplo, que se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto”. E em uma publicação sob os auspícios da Enfam, STJ e CNJ, há um artigo que alça o distinguishing ao patamar de direito fundamental [3].

Portanto, tudo indica que, no imaginário jurídico, o que “pegou” foi a relação precedentes brasileiros e common law. No dia 11.06.2024, noticiou-se nos sites jurídicos: “Precedentes no STF e nas duas Turmas do STJ: aplicado tráfico privilegiado, autos devem ser remetidos ao MP…”. Veja-se como usam o termo “precedentes”. Na verdade, está correto. Qualquer decisão de Tribunal pode ser precedente (ler aqui detalhes sobre isso). D’onde fica sem sentido a distinção “persuasivos-qualificados”. Bom sabemos como isso funciona. É precedente, mas pode não ser. Não esqueçamos que o STJ diz que precedentes persuasivos não dão azo ao uso do 489 do CPC (Pablo Malheiros escreve sobre isso).

Ademais, mesmo no civil law, quando se aplica um precedente, sempre se tem como base essa funcionalidade. Caso contrário, o precedente não é um precedente, é apenas uma tese ou um conceito geral e abstrato que funciona no modo como funcionavam os assentos portugueses – declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional de lá. E isso tem de ser estudado. E levado em conta. Façamos uma epistemologia sobre isso.

Dizendo de outro modo: como fazer distinguishing de tese geral e abstrata construída pro futuro? Esse é o ponto. Como professor, tenho a obrigação republicana de alertar (mais uma vez) as autoridades sobre esses equívocos de ordem epistemológica. Tenho reclamado – e ouvido muitas queixas – da falta de diálogo e de debate sobre o tema. De que maneira se identifica uma ratio decidendi? O que vincula em uma decisão? No meu livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica chamo a atenção sobre isso de há muito.

Mais: até no common law já se trabalha – há bons textos sobre isso – com a ideia de que, pela supremacia do Parlamento, entre um precedente errado e a interpretação correta da lei, fica-se com a lei. No país do stare decisis. De common law.  Aqui, no civil law, em vez de entendermos que o que “vincula” não é “o precedente” enquanto tese geral, mas, sim, a lei a que o precedente se refere, preferimos apostar na antiga autorictas.

O Brasil é, mesmo, um país sem precedentes.

Por fim, deixo uma advertência aos que estudam o processo civil e penal (que vale para os demais ramos): durante muito tempo, não fizemos doutrina no Brasil (e isso não é minha opinião, é história), perpetuando culturalmente o projeto de colonização portuguesa para nós. Como adverte José Reinaldo Lima Lopes, nossos primeiros manuais surgiram com os acanhados títulos de “primeiras linhas”, “esboços” e “anotações sobre o direito português”. Levamos tempo para tomarmos coragem e surgir entre nós um Pontes de Miranda ou um Ovídio Batista. Eles ficariam desolados ao perceber o estado de recolonização gnosiológica ao qual muitos de nossos processualistas se permitiram, agora em relação àquilo que chamam de Cortes de Vértice. Afinal, se o direito é o que os tribunais dizem que é, para que serve a doutrina? Quando respondermos a isso, estaremos iniciando a discussão.

Minha tese: não renunciemos a nosso direito de pensar.

 


[1] Aqui não me refiro ao realismo escandinavo, de caráter mais epistemológico. Importa aqui são as diversas matizes do realismo norte-americano (e do genovês), que têm em comum o ceticismo em relação às leis e às próprias decisões dos tribunais.

[2] Nunca é demais ver como funcionam os precedentes no civil law. Nem de longe há similaridade com o Brasil. Por exemplo, Portugal e Alemanha (ver aqui)

[3]  Cf. Acácia Regina Soares de Sá. A Racionalização na Aplicação da Técnica de Distinção de Precedentes pelo STJ como Direito Fundamental à Segurança Jurídica: uma análise empírica. In: SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO Demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência. Publicação da ENFAM.

  • é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados

Fonte: Conjur